sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

morro de saudade

Morro de São Paulo, BA.
Ao chegar, o poder do encantamento é ainda uma insinuação, uma brisa leve que se inspira ingenuamente com o ar e a maresia. É lenta e sorrateiramente que vai ganhando densidade e ocupando espaços desavisados em nossas mentes. As reações que produz não são de imediato percebidas e se confundem com o prazer frugal de andar com os pés afundando na areia e o ecoar das notas desencontradas de mil músicas tocadas morro acima, morro abaixo...
Por uma única rua se anda, sempre, só em dois sentidos, mas com algum tempo se descobre em quantas passagens, por quantos sentidos se pode andar através dela. No começo, blocos de vitrines sem apelo, restaurantes, um bar, vitrines, quinquilharias, outro bar, via de passagem, meio para alcançar um destino. Uma mudança qualquer na atmosfera, um sopro que vem não se sabe ao certo de que lugar no morro, e então a rua é animada pela história de cada canto do caminho que nela se fez. Como se uma luz incidisse, não sobre a rua inteira, mas aos poucos, em cada parte, preenchendo-a das conversas e devaneios de toda a gente, num burburinho vivo e sonoro.
Quem se abanca junto ao antigo Casarão e fica alí, imóvel, vendo brincar crianças tão pequenas que podiam ser elas mesmas de brinquedo, passar viajantes do mundo todo e suas mochilas abarrotadas, as vezes presas às costas e outras em carriolas que se chamam "táxi", sabe que a praça é a mesma, de dia e de noite. Mas conforme o sol vai se apagando no horizonte e a lua tomando seu posto, surge uma outra praça, totalmente nova. As equilibristas de trouxa na cabeça dão lugar aos malabaristas de tochas de fogo e palhaços poliglotas.
Eis o lugar em que todos, mesmo que por um único instante, se deparam com o real da diversidade: há mais de uma língua, mais de um universo em que viver, mais de uma maneira de existir e de uma alma falar. Violento como a arrebentação das ondas na formação de corais, a revelação as vezes é disfarçada de marola mansa. Há tantas líguas, e quando se falam todas, não se fala nenhuma. Para qualquer direção em que se olhe, seja para o azul perturbador estendido sobre o farol ou para as águas cristalinas em toda a orla, para a arquitetura perfeita do encontro das areias com o mar ou a paleta inteira de cores generosamente distribuídas na paisagem do morro, há uma beleza esmagadora, inevitável, que impõe a todos certo estado de espírito homogênio, certa hipnose estética, que faz crer que podemos nos entender sem palavras. Esta terra pariu uma língua híbrida, assassinando uma concordância verbal aqui, mutilando morfologias acolá... Do despojamento de toda a complexidade da liguagem, adornado com gracejos e seduções baratas, resulta um arremedo de idioma, que falamos rindo, inebriados por sua exuberância.
fev/2006.

2 comentários:

Paulo Vinicius disse...

Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito ainda mora...

Michele Colombo disse...

lindo!
Que tal chamarmos várias pessoas legais e irmos de catamarã para Itacaré lá por setembro??