terça-feira, 17 de junho de 2008

Maitê

Já era noite escura quando Arthur voltava do trabalho cochilando com o sacolejo do ônibus. Um grupo de senhoras rindo e falando muito alto, carregadas de sacolas, arrancaram-no do seu torpor, preenchendo todo o ambiente com aquele alvoroço histérico. Arthur bocejou, olhou para a janela tentando se localizar no trajeto. Ainda estava longe da sua parada.
Foi então que ele a avistou, sentada, um pouco mais à frente, ao lado de uma das senhoras tagarelas: Maitê. Há dez anos atrás, Arthur a conhecera. Era a menina mais bonita do colégio. Do mundo, naquela época.
Maitê tinha olhos enormes e expressivos, que harmonizavam perfeitamente com seus traços angelicais. Seus longos cabelos de seda encaracolados exalavam o frescor dos dias mais afáveis de primavera, e quando pronunciava qualquer palavra, o hálito de bala de framboesa e sua voz meiga de sereia arrancava suspiros de todos os meninos da sexta série. Arthur era secretamente apaixonado desde a primeira. É claro que, em cinco anos, seu sentimento amadurecera, e o que antes consistia em esperá-la na porta do banheiro para lhe acertar mísseis de papel molhado tornara-se então um misto de incontida excitação e vontade de vomitar quando pensava que poderia chamar a atenção daquele par de olhos castanhos para si.
Maitê andava sempre com suas fiéis seguidoras, Raquel e Carolzinha. A primeira, muito magra, era a melhor aluna da classe. Já a segunda, uma ruiva de língua ferina, só poupava as amigas de suas melediscências. Ambas eram cruéis e implacáveis com qualquer menino que se aproximasse.
Não bastasse isto, Arthur tinha uma imagem a zelar como o aluno mais popular da sala, recordista dos campeonatos de taco e colecionador de figurinhas pornográfoicas roubadas com astúcia da carteira de seu tio. Não podia de forma alguma se rebaixar ao julgamento de meninas, pois seus amigos o viam muito acima disto.
Era verão, as férias estavam muito próximas, e por dois longos meses Arthur ficaria longe dos amigos e o que era pior, mais longe ainda de Maitê. Repassava milhões de vezes na sua cabeça um roteiro em que a convidaria para assistí-lo jogar, e então faria tantos pontos que a deixaria deslumbrada. Precisamente neste momento, Maitê descerraria aqueles seus doces lábios rosados e responderia um sonoro "sim" quando ele perguntasse se poderia beijá-la.
Na verdade Arthur nunca tinha beijado uma menina. A não ser a sua irmã mais nova, quando tinha três anos. Mas isso não contava oficialmente como beijo. Ele sabia que beijar a linda Maitê seria uma experiência sublime e completamente diferente de qualquer outra. Mas ninguém da sexta série sequer sonhava que o rei Arthur ainda fosse B.V. (boca virgem) e era vitalmente importante para sua honra que continuassem pensando assim.
Na penúltima semana de aula, durante uma explicação de Matemática, a idéia surgiu como um estalo: Arthur beijaria Catarina, uma menina tímida e ligeiramente estrábica, que jamais contaria a ninguém caso detectasse a sua inexperiência, até porque, dificilmente ela já teria sido beijada para estabelecer qualquer critério de comparação. Sentiu uma onda de alívio ao pensar nessa solução. Finalmente, perderia o medo de beijar e, sem levantar suspeitas, estaria preparado para mostrar a Maitê toda a sua paixão. No fim dessa aula Arthur voltou para casa esfuziado, correndo, quase sem sentir seus pés tocando o chão, investido de uma força incrível que o fazia se sentir um pouco como Deus. Passou o resto do dia pensando em como abordar Catarina, mas a idéia mais o divertia do que preocupava. Seria a coisa mais fácil do mundo convencê-la.
Na manhã seguinte, Arthur chegou atrasado na aula. Logo nesse dia, que queria chamar o mínimo de atenção possível, para pôr em marcha o seu plano. Passou pela fila de carteiras antes de chegar no seu lugar, bem no fundo, ouvindo risadinhas dos colegas e sentindo o olhar repreensivo da professora seguindo-o pela sala. Quando sentou, viu um papel dobrado sobre sua mesa.
"Queremo saber se você aceita beijar a Maitê. Responda no fim da aula. Se contar para alguém, vai se ver conosco. Ass. Carolzinha."


O coração de Arhtur estava no estômago. Sua visão embaçou. Releu o bilhete algumas vezes, para ter certeza de que não estava imaginando coisas. Começou a suar frio. É óbvio, Carolzinha, que não contaria para ninguém. Seu pior pesadelo era que alguém tivesse lido aquele bilhete antes de ele chegar. Alguém que certamente tornaria público aquele convite, que ele em hipótese alguma poderia recusar, mas que fatalmente o transformaria em alvo de piadas e humilhações, quando Maitê espalhasse para todo o colégio que Arhtur não sabia beijar.
Procurou ao redor o olhar curioso ou debochado de uma possível testemunha, mas todos pareciam distraídos com o chocalho da pulseira da professora passando o gabarito da prova no quadro. Estava incólume, por enquanto.


Foram as horas mais angustiantes da sua jovem vida. Sabia que não tinha escapatória, teria que dar uma resposta à Carolzinha. Sabia também que, se recusasse, poderia estar jogando fora a sua chance mais preciosa. Mal podia acreditar que Maitê queria beijá-lo. Ela queria. Isso era de uma magnitude, lhe causava uma felicidade quase insuportável. E justamente por isso não perdoaria a si mesmo se fugisse. Precisava responder que sim. Cogitou a possibilidade de adiar o evento o máximo possível, para ganhar tempo e então se preparar. Quando soou a campainha, todos deixaram a sala, inclusive Maitê, Raquel e Carolzinha. Estariam elas esperando por ele, todas juntas, na entrada do colégio? Teria que falar na frente de Maitê? Ou pior, teria que beijá-la em público? Arthur estava sendo torturado por suas próprias perguntas.
Quando estava descendo as escadas, aquela metralhadora ruiva parou na sua frente. Estava sozinha, graças a Deus! Sua expressão até que parecia mais suave, talvez até estivesse um pouco intimidada, e pela primeira vez Arthur a ouviu falar com uma entonação simpática.
--Então, o que me diz?
--Pode ser. -- Arthur escutou o eco de si mesmo repetindo aquela frase, como se viesse de dentro de um sonho.
--Ótimo. Amanhã, no recreio, ela vai estar atrás da árvore no pátio.
Carolzinha mal terminou de falar e saiu saltitando, como se ela própria fosse beijar alguém. Não houve chance de negociação. Era no dia seguinte, na hora do recreio. Nenhum minuto depois. Ela estaria lá. Maitê, com seus olhos encantadores e sua boca de framboesa, esperando um beijo seu. Aquela imagem era mais extasiante do que qualquer figurinha da sua coleção. Era simplesmente bom demais para ser verdade. O deixava em pânico, com os pensamentos embaralhados, o coração acelerado, lhe dava um verdadeiro nó nas tripas.
Arthur passou a noite vomitando, e na manhã seguinte sua mãe chamou um médico. Não foi detectado nenhum mal, mas por via das dúvidas, acharam melhor antecipar suas férias. As provas já haviam terminado mesmo, e repouso iria lhe fazer bem. Na volta às aulas, Arthur ficou sabendo que Maitê tinha mudado de colégio.
Nunca mais, em dez anos, ele a vira de novo. Agora estava em choque. Aquela mulher gorda, com os cabelos alisados e sem viço, os olhos fundos e opacos escondidos no rosto macilento e precocemente marcado, estampado de exaustão e falta de alegria de viver. Aquele porte desleixado, quase grosseiro, não podia ser de Maitê. Não da sua Maitê.
Sentiu um desconforto pelas realidades conflitantes que se impunham simultaneamente. Era ela. Ou o que restou daquela figura graciosa e resplandescente guardada por tanto tempo em sua memória.
Arthur nunca chegou a saber mas, naquela manhã, na hora do recreio, Maitê chorou escondida atrás da árvore do pátio. Naquele verão seu pai a abandonou com a mãe e foi viver em outro país com a amante.

sábado, 7 de junho de 2008

Meu Querido Diário

"04/01/88
Eu era muito estranha. Pensava em coisas muito diferentes, por esemplo, pensava em magias e poderes mágicos. Fingia que acreditava em tudo. Até que cheguei a uma conclusão:
Vou ser uma criança comum pois não gostei deste tipo de vida. Eu acho que minha vida precisa ser comum. Desde os seis anos eu vivo assim e agora já tenho sete. Além disso sou uma pessoa muito delicada. Não sei por que qualquer coisa choro. Tenho medo de muitas coisas sem rasão. Sigunda-feira dia 28 de dezembro de 1987 eu fui pra casa do meu pai. Ele se separou da minha mãe e foi morar em uma casa no meio do mato. Depois minha mãe foi conheser o lugar, porque eu moro com ela. Ela ia embora e o meu irmão queria ir embora junto com ela. Eu fiquei muito confusa e aborrecida porque eu não gostava de fazer novas amizades por lá e se ele fosse embora eu ia ficar com vontade de ir. Tentei convenselo mas não concegui e acabei indo e eu me arrependi muito. Mas mamãe disse que vamos tentar voltar lá o mais rápido posível, pois é muito longe Santa Catarina.
20/04/88
Hoje é o segundo dia que eu já vou e volto para o colégio sozinha porque eu ganhei a chave de casa. Tenho oito anos e meu irmão vai fazer aniversário depois de amanhã. Minha coleção de papel de carta está cheia de pastas mas vou guardar aqui este que o meu padrinho me deu é lá dos Estados Unidos e ele escreveu pra mim. Faz algum tempinho que eu ganhei um hamster angora. Parece um esquilo.
01/06/88
Eu sou mesmo boba, colar figurinha da Xuxa no meu diário. Acho que fica feio. Mas deixa isso pra lá. Todos estes dias que deixei de escrever foram porque eu perdi a minha chave. Agora acabei de recuperala. Eu tenho quatro chaves: a do Diário, a do cadiado, a do portão e a da casa. Mas é da casa da minha vó. É porque eu volto sozinha para casa, e na minha casa não tem ninguém, por isso eu volto só da escola para a casa da minha vó. Hoje é segunda-feira e na sexta-feira passada teve uma festa junina no meu colégio e eu tinha que ir vestida de prenda, mas como eu não tinha vestido eu não pude ir. Mas minha mãe prometeu que domingo que vem ela vai fazer outra festa.
18/07/88
Hoje eu achei a minha carteira que eu tinha perdido a horas e dentro tinha um dólar e cinquenta crusados. Estou de férias, mas só fui saber quando eu cheguei no meu colégio, porque ele estava vazio, não havia ninguém. Ninguém em lugar nenhum. A sala dos professores, vazia, a cecretaria vazia. As salas de aula sem ninguém. A minha mãe conversou comigo e me disse que todo mundo que chega aos seis anos a gente se sente diferente das outras crianças mas todo mundo é igual. Eu tenho uma pisiquiatra. Mas eu não gosto de falar nada pra ela. Eu não gosto de pisiquiatra, não é que eu não goste dela."

terça-feira, 3 de junho de 2008

empty shell

Days like this, I don't know what to do with myself
All day -- and all night
I wander the halls along the walls and under my breath
I say to myselfI need fuel -- to take flight --
And there's too much going on
But it's calm under the waves, in the blue of my oblivion
Under the waves in the blue of my oblivion
Is that why they call me a sullen girl
They don't know I used to sail the deep and tranquil sea
But they washed my shore and they took my perl
And left and empty shell of me
And there's too much going on
But it's clam under the waves, in the blue of my oblivion
(Fiona Apple)