quarta-feira, 21 de maio de 2008

livre devaneio metapsicológico

Estar vivo é uma inundação de estímulos, a experiência é avassaladora e precisa ser escoada de nossas almas para que não transborde. Uma das maneiras mais conhecidas de fazer este escoamento é vertendo lágrimas, mas sobretudo aquelas lágrimas que estão impregnadas de sentimento, idependente da sua qualidade. O sofrimento, aqui tomado no sentido de sujeição à experiência, pode ser de alegria ou tristeza, espanto ou comoção, etc.. Em alguns casos obstrui-se o aparelho escoadouro na tentativa de protegê-lo do sofrimento, quando sofrer se iguala a admitir quantidades insuportáveis de estímulos, incompatível com a capacidade receptora. Negar-se o alívio logrado pela dor é tambem vetar os caminhos que conduzem às sensações prazerosas. Tem, portanto, muito mais serventia uma dor genuína, sentida em toda sua intensidade, que um contentamento forjado na tentativa de represar o transbordamento de emoções. A descarga do sofrimento é relativamente simples de se executar, quando admitida. Isto porque o caminho da dor é universalmente conhecido e já trilhado por todos os seres vivos, a começar pela dor de vir ao mundo. Trilhar este caminho já aberto é deslizar por uma corredeira onde quase não há obstáculos ou atritos, é líquido e veloz. Mas por sua falta de complexidade, também desperdiça por vezes muito da carga efervescente de emoção que, sob formas mais sofisticadas de escoamento, poderia ser aproveitada com maior economia e produtividade. Por exemplo: tente utilizar este caldo borbulhante e poderoso como combustível para um pensamento, e verá o tamanho do potencial gerador de novas idéias carregadas pela experiência, que por sua vez estendem-se em milhares de outras derivadas. Pensamentos são artigos de luxo, constructos elaborados, que servem ao nosso deleite. Eles dão forma à essa massa, continente à essa turbulência desenfreada que nos atravessa, e nos permite experimentá-la em quantidades controladas, degustada em pequenos frascos, em um ritmo adequado à nossa necessidade de digestão, enquanto a dor apenas (!) nos permite livrarmo-nos dessa turbulência para que não nos arrebate. Os pensamentos nem sempre atingem a excelência da dor em termos de eficiência de descarga. Ao invés de deslizar livremente, a energia fica retida aqui e alí, nas pedras do caminho, e é precisamente nisto que reside a possibilidade de utilizá-la. A dor tudo justifica. Ninguém se atreve a discutí-la. Os pensamentos, por sua vez, já nascem incompletos, e por isto sua tendência natural a se reproduzirem, gerando adendos, apêndices e complementos que jamais dão conta de fechar uma questão.

*Escrito em guardanapo de bar em alguma noite de 2005

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