segunda-feira, 22 de outubro de 2007

refúgios

Na casa da minha infância havia um sótão, não daqueles cheios de quinquilharias e tesouros escondidos, era bem mais sem graça que isso. E tinha um cheiro engraçado. Mas a questão é que através da janela do sótão, podia-se chegar facilmente ao telhado. No começo eu precisava de uma escada, daquelas de três degraus. Depois minhas pernas espicharam e sentia-me orgulhosa de dispensar este artifício.
As pessoas insistem em idealizar a infância, como se fossem os tempos áureos, ou a idade da inocência. Como se fosse fácil por não termos as mesmas responsabilidades da vida adulta. Mas qualquer um que quiser ser um pouco mais honesto vai concordar que essa época é bastante dura. E há momentos, então, em que tudo ao seu redor está errado, e você não consegue entender o porquê, muito menos tomar providências a respeito. Há certas ocasiões em que não se tem nem mesmo um vocabulário capaz de dar conta do que se passa, e aí as fúrias do estômago entram em ação. Você ama quem deveria desprezar e odeia quem deveria amar, e tudo é confuso e estarrecedor.
Nessas horas, eu subia no telhado. As vezes sem nada, as vezes com um exemplar de Edgar Allan Poe em quadrinhos. Queria que as histórias horripilantes me deixassem com medo, e então esqueceria a revolta, o ódio e a culpa, e sentiria apenas medo. Escolhia as mais macabras possíveis, e ficava lá, enquanto houvesse luz, e sabia que ninguém viria me procurar até o entardecer. Nesta época, é claro, não tinha o problema com alturas.
Com o tempo, mudou a casa, mudaram os refúgios. A padaria da esquina, a pracinha, o bar. Só agora me dou conta de que os lugares foram tornando-se cada vez mais cheios de gente. E isso porque eu já não precisava mais estar só para me sentir sozinha. Quando chegaram as oportunidades, comecei a ir mais longe. Léguas e léguas de distância, sempre procurando paisagens bonitas e desconhecidas, talvez para me sentir um pouco amedrontada, como com os quadrinhos. Mas o problema é que não era isto o que eu queria de verdade... Nem lá, em cima do telhado. Nunca quis estar sozinha, mas sim, em paz.
Só depois de muito tempo aprendi a diferença entre estar só e estar solitária. Nos “áureos tempos”, por maior que fosse o deserto ao meu redor, nunca conseguia ter a tranqüilidade da experiência de mim mesma. Minhas opções se limitavam a sentir um medo controlado ou ficar com a mente povoada por todos os monstros com quem eu brigava, e daí o transbordamento insuportável daqueles outros sentimentos que, invariavelmente, invocavam as fúrias do estômago.
Não sei dizer ao certo o que fez os monstros me concederem folgas, eventualmente. Acredito que tenha relação com o fato de eu ter crescido e desistido de ludibriá-los com os meus truques de terror. Deixei de tentar vencê-los e juntei-me à eles numa genuína rendição. Resolvi empregar todo o meu ser no intento de odiar, amar, invejar, destruir, amargar a mais penosa culpa, reparar, viver e reviver à exaustão. Acho que isso não foi bem uma escolha, mas uma decorrência inevitável dos anos. Não é fácil achar o caminho, muitas vezes me perco no sótão antes de chegar à janela. Mas quando encontro, nesses relances de trégua, o meu verdadeiro refúgio, aí posso estar acompanhada ou sozinha, mas não solitária.

Um comentário:

Paulo Vinicius disse...

Quando eu era pequeno, uns 4 ou 5 anos, eu estudava numa escolinha, eu odiava, lembro que o lugar que eu mais gostava de ficar era num brinquedo do parque, em forma de foguete, eu subia na escada até o final e conseguia ver o semáforo, que era o mais próximo que eu conseguia chegar da rua... era horrível. A única hora boa era quando minha mãe chegava pra me buscar.