quarta-feira, 17 de outubro de 2007

realidade factual e verídica

Ontem à noite, só para variar, dormi. E sonhei. Não lembro por qual porta entrei, mas me vi rodeada de um salão tão grande, que qualquer sussurro alí faria eco. No centro, a mesa estava posta com esmero e refinamento. Pesadas cortinas pendiam do teto até o chão, e candelabros iluminavam parcamente a cena. Sentei-me à cabeceira. À minha esquerda, quatro bacantes que se entreolhavam e davam risinhos nervosos. À minha direita, com a cara mais sisuda do mundo, sentou-se o Sr. Totem. Achei aquilo engraçado e resolvi quebrar o gelo, perguntando o que teríamos para o jantar. As bacantes, ainda entre risinhos histéricos, repetiram a minha pergunta “O que teremos para o jantar? O que teremos para o jantar? O que teremos para o jantar?” Penso que riam de mim. Sr. Totem ainda me fitava de cara fechada, e senti que precisava criar um canal de comunicação com ele. “Responda-me uma coisa, senhor: Não é um tanto incoerente, o senhor sentado aqui, à minha direita? Pelo que conheço da sua autoridade e importância, não deveria o senhor estar sentado à cabeceira desta mesa? E ademais, surpreende-me vê-lo encarnar esta forma humana, quando aprendi que totem se trata de uma entidade simbólica, que no máximo se apresenta sob a imagem de um animal...” Mal terminei a frase, pude ouvir as gargalhadas das bacantes, outra vez a me zombarem. Sr. Totem então quebrou seu funéreo silêncio e esbravejou em reprimenda: “Isto é totalmente impróprio para a hora da mesa!” Fiquei tomada de vergonha e baixei a cabeça. Agave, a mais velha das quatro bacantes, veio em minha defesa: “Você sabe, é impróprio para a hora da mesa. Mas não é impróprio para a hora da cadeira, ou da escrivaninha, ou do criado-mudo...” Eis que o criado, mudo, serve o vinho, e faz-me um sinal para que eu o acompanhe até o início de um estreito e interminável corredor. Diante dele, na placa pregada à parede, li a seguinte inscrição: “AQUI É ONDE CORRE A DOR. QUEM DESEJAR ATRAVESSÁ-LO, NELA ESBARRARÁ.” Resolvi deixar para mais tarde, e fui tomar um ar na sacada... A noite estava mais escura que o normal. Tive o impulso estúpido de olhar para baixo, e logo fui tomada da familiar crise de ansiedade que me acompanha quando estou nas alturas. Começou a me faltar o ar, e o que me salvou foi minha memória. Lembrei de um dos poucos ensinamentos úteis de Morfeu, aquele que sempre tentava me carregar para as profundezas mortíferas da sonolência eterna. “Boceje.” Então abri a boca o máximo que pude, e deixei meus pulmões encherem-se com o ar denso da noite. Foi tiro-e-queda. Este truque é realmente ótimo, pensei. A gárgula que estava sobre o parapeito começava a se movimentar, inquieta, e a me olhar como se me desafiasse. Achei aquilo de uma audácia tão grande, que resolvi subir nas suas costas, e então alçamos vôo por sobre as montanhas e florestas da região. Perto do alvorecer, pousamos junto de um lago, e em uma de suas margens uma fada punha-se diante de um ventilador, com uma expressão de extremo tédio, a esperar que suas asas encharcadas secassem. Tinha os cabelos descoloridos e vestia-se de rendas que lhe emprestavam a delicadeza que a natureza não lhe dera.“Foi este lago que molhou as suas asas?” perguntei. Ela soltou uma gargalhada, e eu comecei a suspeitar que algo havia de muito errado comigo, que já pela segunda vez era tomada como motivo de riso. “Então você não sabe que fadas não entram em lagos? Não conhece as regras aqui?” E foi por condescendência que ela continuou: “Eu preciso secá-las de tempos em tempos, se quiser voar. Acontece que as lágrimas que as pessoas engolem se condensam todas aqui, deixando minhas asas encharcadas. Não há muito o que fazer, ainda mais agora, que inventaram o PROZAC. Todos com essa moda de engolir lágrimas... É um enfado!” Fiquei observando-a alí, tão resignada ao seu injusto destino de pagar pelas excentricidades desses falsos alegres... E admirei sua generosidade, assim como a benevolência e o desprendimento com que secava aquelas asas, privando-se de voar para que outros alçassem vôos de felicidade artificial. Chorei. “Oh, obrigada!” ela exclamou. “Agora estão quase secas... Só mais uma sacudidela!” E tão contente que ficou, resolveu convidar-me para uma jornada. “Você sabe que existe uma passagem, em algum lugar não muito longe desta floresta, onde convergem todos os pontos da Terra? Podemos entrar por ela e sair em qualquer lugar, qualquer mesmo! Onde você deseja estar?” Perto dele, teria sido a minha resposta, se eu a tivesse dado. “Venha, eu farei o trajeto pelos ares, sobrevoando a mata para apontar-lhe a direção. Quanto a você, trate de analisar as condições do terreno para decidir onde poderemos parar para descansar.” Enquanto seguíamos nos afastando do lago, podia escutar a gárgula invejosa dizendo: “Qual o sentido disto? Que infantil e ridículo intento! Podem me dizer de que vale este projeto? Vagar errantes por uma floresta dessas procurando coisa que nem mesmo existe! Quanta vadiagem, quanta perda de tempo! Sonhos são pura perda de tempo! Então acordei.

2 comentários:

Paulo Vinicius disse...

Por isso que eu não como nada pesado antes de dormir... nunca mais engulo choro... pra que ela possa voar.
Vou ter que começar a usar óculos se continuar lendo tanto seu blog... essa fonte preta com fundo bordô arde os olhos...

Anônimo disse...

Gabi querida, adoro passear aqui e devanear com estas realidades verídicas...
Beijo