quarta-feira, 14 de novembro de 2007

delicado resgate

Despertei de uma inconsciência má para encontrar-me naquele aposento cheirando a pão assado e alfazema, com poucos objetos e a calidez suave da sua presença. Antes de sobressaltar-me e tentar compreender o que estava fazendo ali, talvez por já ter desistido de qualquer luta e me rendido aos caprichos do destino, corri meu olhar ao redor, senti a aspereza da banheira enferrujada e a brandura da água que me cobria, acordei meus ouvidos com o cricrilar dos insetos, e observei-a por um momento na sua magestosa simplicidade.
Tinha uma beleza puída pelo tempo, sem artifícios, contida em si mesma com exatidão. Não havia promessas em sua graça, nada além do que se mostrava ali, e por sua singeleza tornava-a ainda mais solene.
Banhava-me como se banha uma criança: com todo o zelo e nenhuma malícia. Tinha ainda por descuido algumas folhas de outono enredadas no apanhado do coque.
Levantou-se com a leveza do vento e andou até o guarda-louças, imprimindo pegadas d'água no assoalho rangente, com um gato a costurar o caminho por entre seus tornozelos. Ao afastar-se senti um lampejo de solidão, coisa que não me costuma acometer. Trouxe consigo o jarro cheio para derramar sobre meus ombros, e tão logo a água me caiu às costas senti rasgar-me a pele a ferida ainda aberta, o talho fundo de uma vingança imerecida, a marca de uma batalha inútil da qual não tinha medalhas para ostentar. Sufoquei um grito em meu próprio deslumbramento ao encontrar seus olhos imensos como a noite, e a forma como lhes emolduravam as grossas pestanas. Olhava-me com seu rosto austero, sem dizer palavra.
Perturbou-me pensar no estado em que me encontrara, encharcado do fel da derrota, de sangue e poeira. Minha jornada foi tão longa, pensei, e não podia adivinhar por que atalhos recônditos desse caminho teria chegado àquela morada, àquela sorte, aos seus cuidados tão pios, àquele leito de mistério e benevolência.
Para lavar-me os cabelos o fazia com firmeza, seus dedos riscando com vigor meu couro cabeludo, como se cavasse com as unhas meu baluarte de falsas e penosas certezas e plantasse em seu seio um grão de fresca esperança, mergulhando-me num misto de aleluia e torpor. Recebi com acanhamento esta intimidade, até que deixei meus olhos se fecharem e a luz boa daquele cômodo convergiu em espessa treva.
Sabia-me tão seguro que nem mesmo por meus pesadelos poderia me ver assombrado. Queria guardar num cofre aquele sentimento, pendurá-lo fora do alcance das horas, saboreá-lo aos pedaços, reter algo dele para o futuro. Sua imagem sublime iluminada pela clarabóia fazia eco em minhas lembranças, mas já não podia dizer se era estranho aquele rosto, que julgava desconhecido, mas tão familiar. Sabia, contudo, com a clareza com que se sabem as verdades tácitas e os segredos mais valiosos: eu estava, finalmente, em casa.

Um comentário:

miss_lioncourt disse...

...desconhecido mas familiar...exato.