sexta-feira, 21 de setembro de 2007

para quê servem as palavras II

É um problema matemático. Ele quer que um mais um seja igual a um. Nunca vai ser. Concordo que houve um tempo em que não precisávamos de palavras. Era só aquela turbulência de idéias pré-formuladas e desejos e expectativas de uma intensidade brutal. Aí eu fazia menção de procurar os fósforos e em segundos ele estalava aquele isqueiro brilhante e a chama se materializava fazendo a brasa incandescente aparecer. A chama que iluminava tudo, e ficávamos saboreando uma euforia de saber precisamente as respostas para as nossas vidas.
É claro que não se tratava de ascender um cigarro, mas da emergência de uma sintonia diabólica. Não havia gesto meu que não ganhasse um sentido especial sob o seu olhar, nem movimento dele que eu não capturasse em um significado, cheia de perícia. E então o desenrolar natural dos eventos carnais, a imersão total e completa na fruição de um deleite ilimitado, a festa dos sentidos e uma suave agonia na iminência do risco de um auto-abandono a este estado que, em demasia, se iguala à morte, tamanha a paz que proporciona.
Logo brotam as conversas coloridas por esta cena mágica, e em algum ponto sinto-me encharcada de uma alegria infantil pela sensação do reencontro com algo que desde sempre me fora tão incrivelmente familiar e que, contudo, jamais tivera um NOME. Descobrimos isso juntos. As dúvidas se extingüem com a rapidez de um raio espetando a Terra. Era ISSO que eu procurava, eu sei, eu sei, eu tenho CERTEZA. E agora que o traduzimos em palavras, poderá ser meu, para sempre. Acabamos de obturar a falta, aquilo que sempre carregamos com tanto incômodo, aquilo que chamam de solidão ou condição humana. Quem precisa disto? afinal, somos deuses aqui. Para não exagerar na ousadia, somos seres complementares, amalgamados e predestinados a vivermos nessa harmoniosa sincronia. Quando ele estiver calado será minha vez de produzir as falas. Quando eu estiver cansada ele se moverá.
Veja bem, não quero usar aqui a palavra FINGIMENTO, chega a me causar uma náusea, mas não consigo encontrar outra... Só por um segundo, eu quis me calar e ele também, então fingi não saber disto. E não foi só uma vez. Na verdade, houve também aquele outro dia em que eu quis andar mais rápido, pois sentia-me vitalizada pela velocidade, e ele estava encantado com a paisagem na serenidade de seus passos. Mas fingiu não se encantar mais, para podermos andar no mesmo ritmo. E assim começaram as minúsculas amputações de partes inconvenientes, que resistiam a se encaixarem. Ao final de um certo período já havíamos perdido a conta de quantas partes havíamos ejetado para fora do nosso círculo perfeito. E essas partes, você sabe, ficam lá orbitando, reclamando reconhecimento. E daí a triste esterilidade de termos nos fragmentado, feito-nos em tantas partículas que jamais se comunicam. Isto exigia uma medida drástica, a implementação de um círculo ainda mais grandioso, ferozmente onipotente. Saímos pelas ruas exibindo nossa completude, na patética esperança de que, ao convencermos os outros da sua pureza e inquestionabilidade, criaríamos um escudo para a chuva ácida das diferenças que tanto nos ameaçava.
E daí você pode perguntar "mas para quê tudo isso?", quem determinou essa sina, que lei é essa que aprisiona duas almas no ínfimo espaço de uma só (isto era tão romântico...)? Por que não construímos espaço para que cada um possa SER, independente do outro? Acontece que é trágico quando percebemos, por fim, que aquele doce alento tão bem-vindo não podia ser eterno. Que as respostas às nossas perguntas não foram encontradas, mas que só fizemos gerar mais perguntas, e então a inquietude de tudo. É assim a vida, diversa, turbulenta, criativa, cheia de contrastes. São suas falhas, suas arestas que continuam nos movendo e nos fazendo sonhar. A paz combina com a morte, e o árduo trabalho de se ver e enxergar o outro exige grandes renúncias. Estamos diante de um fabuloso mistério, uma coisa chamada ALTERIDADE. O que sei sobre ele? O que ele quer de mim? Quer que eu sorria, agora? Eu quero sorrir? Qual é o meu desejo? O que me faz sorrir? Vai me entender realmente se eu apenas disser o que sei dizer de mim, ainda que seja insuficiente? Qual é o NOME disto que eu sinto? Já não havíamos encontrado? Eu sabia, eu sabia, eu tinha CERTEZA...
Talvez se eu der um passo, só um passo, para fora deste círculo, encontre aquele pedaço que havia jogado fora e já nem lembrava que me pertencia... Que nostalgia das minhas partes esquecidas... São minhas? Posso experimentar? Tarde demais, já estou transgredindo! Sinto muito... Eu acho. Um mais um precisa ser dois (isto não é assim, os matemáticos sabem melhor do que eu).

2 comentários:

Michele Colombo disse...

Lindo, lindo, lindo e verdadeiro. La das guturas da alma.
Para que um mais um seja dois, eh preciso enfrentar muitos conflitos. Uma ardua tarefa.
Minha pergunta de conjuminadora eh: por que tanto medo de encara-los? Ou talvez a questao seja acharmos (nos enganarmos) que nao vale a pena...
A constatacao, cruel, eh que estamos todos nos tornando cada vez mais infantis.
Mas ha esperanca, ha de haver, tem que haver! Vamos todos crescer.
Um beijo grande!

Paulo Vinicius disse...

com os relacionamentos anteriores aprendi:
"a ser um pouquinho menos egoísta"... esse "não egoísmo" não pode ser uma forma de se moldar e acabar perdendo alguns dos pedaços que estavam no círculo?